Caminhos submersos

Minha cidade está doente, e ainda não sabemos como será a recuperação. Mas vamos dar um jeito. Precisamos dar.

Quase todos os dias da semana, a Lina, minha filha de 12 anos, e eu passamos pelo mesmo trecho do centro histórico de Porto Alegre na volta da escola dela (e do meu primeiro turno de trabalho do dia) no bairro Rio Branco, a caminho da nossa casa, em Ipanema.

Muita gente me questiona por que insisto em fazer esse trajeto. Por que não optar por uma escola perto de casa? Explico que temos uma identificação muito grande com a filosofia do colégio, que não encontro em nenhum da zona sul (verdade verdadeira), que acho bom que a guriazinna estude perto da casa da avó Alair e da tia Carolina (outra verdade) e que não acho que a meia hora de trânsito pra ir e a outra meia hora para voltar sejam um sacrifício tão grande (mais um fato). O que eu nem sempre digo, porém, é que uma das coisas que eu mais curto nessa rotina é poder botar a conversa em dia com a minha agora adolescente, cantar alto as músicas que ela escolhe ou mesmo só tê-la ao meu lado enquanto percorremos o caminho que nos reforça nosso sentimento de sermos porto-alegrenses.

É fácil falar mal da cidade, dos seus motoristas inacreditavelmente egoístas, das sucessivas administrações escalafobéticas, da estética duvidosa de tantos prédios (novos e antigos), do excesso de shoppings e das não poucas soluções urbanísticas delirantes. Mas passar pela beira do rio (pra mim segue sendo rio!) é uma lembrança de por que me esforcei por seguir aqui, perto das raízes que custei a fincar em algum lugar, depois da infância e adolescência nômades.

Faz tempo que me dei conta de que morar em uma cidade com um corpo d’água que ofereça norte, amplitude, orla e linha do horizonte é um privilégio, uma sorte, uma benção. Maior ainda quando se pode contar com um meio de locomoção que permita percorrer sua margem sempre que se deseje. De todas as coisas que me ressenti nos anos em que vivi em São Paulo, a maior de toda era a ausência dessa experiência que apenas cidades com praia oferecem.

Os últimos dias têm sido duros para nós, aqui no nosso pedaço de fim do mundo. É verdade que, felizmente, para mim e os meus não houve perdas relevantes. Ninguém ficou sem casa, ninguém perdeu ninguém, ninguém perdeu o patrimônio de uma vida. Estamos todos bem. Mas não estamos. Porque a tragédia está do nosso lado, e nem todos os pix do mundo conseguem nos fazer superar a dor da impotência diante do que vemos nas telas das TVs, dos computadores, dos celulares.

No meu caso, teve ainda a recuperação de uma cirurgia simples, porém incômoda, e a inevitável pressão de uma segunda semana de trabalho em uma empresa nova. Mesmo sendo incrível, ou talvez justamente por causa disso, um novo emprego é sempre fonte de estresse. E então sextou. Eu sextei. E tive tempo de navegar pelos relatos, retratos e vídeos do que está acontecendo – e não sabemos ainda até quando.

No vídeo que ilustra este texto, a percepção do que está havendo ficou palpável. Não é um trajeto qualquer que está ali. É o meu trajeto e da minha filha. É o meu caminho na minha cidade. Onde nasci e escolhi que minha filha nascesse. Quem me conhece sabe que não sou do tipo patriota ou bairrista, mas sou apegada às minhas histórias. Paris, Lisboa, Rio, São Paulo, San Francisco, Buenos Aires são cidades incríveis, aonde quero voltar tantas vezes quantas for possível, mas elas não me têm.

Fui replantada aqui a contragosto aos 17 anos, depois de ter vivido enxertada entre São Paulo e Sorocaba dos 6 aos 16. Eu não queria vir. Agora, não quero mais sair. Racionalmente, condeno quem ponha a própria vida em risco para não se separar de suas coisas. Emocionalmente, entendo o apego. Não são apenas as coisas. São as histórias, as memórias, os afetos do lugar. Não queremos que eles sejam arrastados por nenhuma enxurrada.

Este vídeo me fez finalmente chorar. Me fez soluçar. Porque minha cidade está doente, e ainda não sabemos como será a recuperação. Mas, como diz a minha filha desde muito pequena, não sei tirado de onde, diante de um impasse: “não tem problema, a gente dá um jeito”.

Vamos dar um jeito. Precisamos dar.

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