Farofa: o melhor acompanhamento

Nossa primeira cachorra efetivamente resgatada das ruas virou estrela hoje, deixando um legado gigante de afeto e lealdade

O primeiro cachorro que Márcio e eu adotamos foi o Floc, um Lhasa Apso puro sangue (com uma árvore genealógica de dar inveja a qualquer membro da família real inglesa) que se tornou um fardo para a tutora original. Ele viveu conosco até os 13 anos, vitimado por uma insuficiência renal que costuma afligir cães da raça dele. Quando o Floc tinha 8 anos, a Black, cachorra chiquérrima dos meus sogros, teve um romance litorâneo e, dessa aventura, nasceram três filhotes. Sendo a família de cachorreiros, os três ganharam destino certo antes mesmo do parto. Para nós, veio o Bubi, que ficou ao nosso lado por 15 anos, até 2017.

Quando o Floc morreu, em 2007, não pensamos em adotar outro bichinho para fazer companhia ao Bubi porque estávamos focados em engravidar. Chegara a hora de exercer nossa parentalidade (palavra que ainda não era moda) com um ser humano. Como estávamos custando a obter sucesso para gerar um bebê, nossa querida amiga Ana Maria Bahiana me deu uma dica de bruxa, lá de Los Angeles: “adotem um gatinho para mostrar a Bast que a casa de vocês está aberta a uma nova vida”. Quando argumentei que tenho uma alergia incapacitante a pelos gatos (embora os adore), ela contrapôs: “pode ser um cachorrinho, Bast também gosta de cachorrinhos”.

Com isso em mente – e mais ainda pensando que um novo filhote faria muito bem ao Bubi, que estava ficando velhinho –, passei a buscar nas redes sociais de protetores dos animais uma cadelinha que tivesse a nossa cara. Não foi logo, mas quando vi aquele bichinho cinza de olhos atentos numa página, decidi que era nossa. A legenda dizia que seu nome era Giovana. Mostrei ao Márcio, que imediatamente concordou que ela devia ser nossa e vaticinou: “mas ela não tem cara de Giovana, ela tem cara de Farofa”.

No processo de adoção (tivemos de esperar pela cicatrização da castração enquanto éramos avaliados para ver se preenchíamos os requisitos), descobrimos que a ex-Giovana, quem sabe Farofa, havia vivido os primeiros cinco meses de vida em frente a um bar, em Viamão, onde ganhava restos de comida, e os três meses seguintes no sítio de uma protetora dos animais que mantinha mais de 200 animais em busca de uma casa. Pela primeira vez, pegamos um bichinho de cujo passado nada sabíamos. Foi sem nunca ter tomado banho e com uma fome milenar que pegamos a nova integrante da família Zanon-Pinheiro. Era lindinha e calminha (anrã).

Banho tomado, comida dada, casa apresentada, Farofa mostrou a que veio. Era uma cachorrinha esperta, comilona, independente e corajosa. Entendeu de cara que o Bubi era o chefe do pedaço, e fazia de tudo para agradá-lo. Se não se encantou por ela, ao menos ele a aceitou sem ressalvas. As inúmeras fotos dos dois deitados grudados um no outro são prova disso.

Menos de um ano depois da chegada dela à nossa casa, a Deusa Bast indicada pela Ana Maria cumpriu sua parte no trato. Márcio e eu engravidamos. Foi aí que a nossa terceira cachorrinha se tornou nosso animalzinho de estimação menos paparicado. Embora nunca tenha deixado de ganhar comida, água, acesso livre à casa e muito carinho, ao contrário do Bubi e do Floc, ela não era a protagonista da nossa vida.

E é aí que está a lindeza maior da Farofa (que sabia ser bem esquisita, com seus pelos sempre desgrenhados, mesmo após o banho mais chique, os dentes tortos e meio podrinhos, uma orelha mais torta que a outra e o focinho e a barriga salpicados pelo vitiligo – doença que, creiam, é bastante comum em Rottweillers…): ela nunca se apequenou no espaço de coadjuvante de um bebê absurdamente esperado e adorado e que se tornou o foco maior das nossas atenções pelo menos pelo primeiro ano de vida.

Ela nunca se apequenou porque era uma cachorra digna, altiva e, descobrimos logo, generosa e ciente dos seus deveres. Enquanto o Bubi tratou a Lina com a maior indiferença desde a chegada da maternidade, a Farofa se imbuiu no primeiro minuto da tarefa de guardiã da filhote humana da casa. Nos poucos dias em que a entrada deles no quartinho era vetada, ficava deitada diante do portão de metal que usamos para separar a Lina do resto da casa. Logo, ele se mostrou desnecessário, e embaixo do berço e ao lado dos carrinhos em que a pitoca dormia era o local de escolha da nossa grisé.

Depois de comer mais de 10 pés (direitos) da minha coleção de havaianas e esburacar algumas vezes a grama pátio – diante do olhar perplexo do Bubi –, Farofa foi se acalmando e se conformou em roer os brinquedos que dávamos a ela (tinha de ser aqueles de fibra, gigantes, feitos para cachorros de grande porte, como dogs alemães ou weimaraners). A fome milenar, porém, jamais a abandonou.

Até a semana passada, mesmo depois de comer sua porção de ração, não podia nos ver comendo qualquer coisa (QUAL-QUER COI-SA) que vinha pedir. Quer dizer, exigir. Por conta disso, eu sempre comentei que saberia que a Fafá não ficaria muito conosco quando parasse de comer. Ela parou de comer no último domingo. Segunda ainda aceitou um franguinho cozido, mas depois, nada. Foi então que nossa veterinária-anjo, Simone Wolffenbüttel, entrou em cena e garantiu que déssemos um fim confortável e digno (como ela sempre foi, apesar de sua escancarada viralatice) à nossa primeira cadelinha.

Quem não tem animais de estimação ou não consegue sentir empatia por cachorreiros e gateiros não deve entender a dor que estamos sentindo neste momento. Mas nos conforta saber que muitos, pelo contrário, sabem como é essa passagem. Farofa fez muitos amigos nos 13 anos e meio que esteve conosco, e eu sei que deixa bastante saudade.

Para a Lina, a menina para quem ela abriu as portas, com a ajuda da Deusa Bast, ela deixa o ensinamento de que é possível ser doce sem ser submissa, que é possível não fazer o que não se quer sem ser ofensiva ou agressiva, que comer é bom demais, e que poucas coisas são tão boas quanto ficar ao lado de quem nos ama, mesmo que seja fazendo nada. Também deixa claro que a beleza pode estar num cabelo despenteado, num nariz manchado, numa orelha torta.

Estou aqui chorando demais, Farofinha. A gente vinha se preparando fazia tempo para esse dia, pois vinhas envelhecendo visivelmente nos últimos meses, mas nunca ficaríamos prontos pra essa tua ausência que ocupa um espaço gigante nas nossas vidas.

Dá lambidas por nós no Bubi e pede pra ele te apresentar o Floc. Aqui em casa sempre achamos que vocês dois se dariam muito bem. Te amo, minha veia querida. Pra sempre.