Um texto é um texto é um texto
Escrevo e reescrevo porque é a base do(s) meu(s) ofício(s). Também entendo que a maioria dos ofícios de quem me cerca depende da escrita de alguma maneira – seja produzindo petições, lista de requisitos, prontuários, e-mails ou relatórios. Há algum tempo, porém, descobri a beleza (e a necessidade) de escrever simplesmente por escrever. Então, mesmo quando não estou trabalhando, escrevo. Escrevo porque preciso, sem pensar em quem (se é que alguém) vai ler aquilo. Porque é na imprecisão das palavras que saem dos meus dedos que os sentimentos que me inspiram, assustam, alegram e entristecem ganham sentido. Não resolve tudo, mas ajuda muito.
Quando a Juliana Sleutjes, proprietária e alma de um dos cafés mais charmosos de Porto Alegre, o Limão Bergamota, sugeriu fazermos um clube de leitura, resisti à ideia. Embora seja leitora voraz, sou igualmente errática, inconstante e indisciplinada na gestão dos meus livros. Como não gosto que me digam o que ou quando ler, não tenho coragem de fazer isso com os outros. Não daria certo.
A provocação, porém, me fez lembrar da jornada difícil e longa que percorri para desaprender a escrever como fui ensinada e treinada a fazer ao longo de muitos anos. Introjetei de tal forma (primeiro) a ideal impessoalidade jornalística primeiro e (depois) a adaptabilidade ao estilo do texto sendo traduzido (para trair o mínimo possível), que, chegando aos 30 anos, não conseguia mais nem sequer escrever um diário sem que ficasse parecendo um editorial ou algo escrito por outra pessoa. Fazer posts nas redes sociais ou mandar e-mails ou mensagens pessoais era quase paralisante. Como me colocar num texto depois de tantos anos me condicionando a ficar de fora da mensagem? Se não pudessem ser comprovados com dados e fatos, minha opinião e meus sentimentos não interessavam.
O processo de “soltagem”, palavra criada por uma linda participante do clube de apenas 17 anos, a Julia, começou com a criação do meu primeiro blog, em 2003. Os primeiros textos, duros, tensos, dão uma noção das travas que me empacavam. Quando surgiu o Twitter, em 2007, a coisa já estava mais solta, e os então 120 caracteres de limite e o uso restrito a early adopters, como eu, ajudaram a enganar um pouco mais o superego. Ainda para vencer essa limitação, procurei e frequentei diferentes cursos de escrita.
Aprendi muito, me soltei um pouco, mas, ainda faltava algo, que eu ainda não sabia explicar até começar a experiência efetiva de reunir pessoas diferentes em torno do objetivo de “escrever com afeto”. Faltava, eu vejo agora, o descompromisso, a ideia de que o texto que se escreve com o coração ou as tripas é pode não servir para nada além de existir. Não é porque está sendo escrito que um texto precisa obedecer regras, seguir técnicas, ganhar o mundo, ser publicado, debatido, postado, comentado. O texto pode ser só de quem o escreveu. Ponto.
Levando tudo isso em consideração, aceitei a proposta da Ju de abrir um espaço de debate em torno da leitura, mas na forma do Clube de escrita afetiva, que desde março é realizado todas as terças-feiras, das 19h às 20h30, no café do bairro Jardim Isabel, Zona Sul de Porto Alegre. Sei que a palavra “afetiva” hoje é praticamente uma “potente”, “empoderada” ou “resiliente”, de tão banalizada. Mas acredite quando digo que não há outra forma de descrever essa escrita que encontrei depois de muita busca e agora venho tendo o prazer de passar adiante.
O que testemunho e sinto nos encontros das terças é o quanto escrever por escrever ajuda a organizar, saudar ou expurgar os afetos e desafetos que nos habitam – um processo de autoconhecimento e percepção do outro como um ser com muitas mais dimensões do que ele fazia crer. Duas das pessoas que vêm participando do clube, compartilharam as impressões sobre o que estamos fazendo, e elas vão na mesma linha:
O clube da escrita afetiva é um momento de união, amizade, conectividade. Permite a troca e a percepção de velhas e novas ideias, traz o olhar e a sensibilidade para as coisas e pessoas no dia-a-dia. O pensamento viaja no tempo passado, presente e futuro. E nas linhas do papel vamos colocando as ideias, sentimentos, relembrando histórias e momento vividos ou não. A escrita afetiva liga a mente ao coração e as nossas mãos fazem o balé da caneta com o papel, registrando todas as emoções.
Lúcia Zani
No clube da escrita afetiva me sinto acarinhada. Sempre fui muito técnica e escrever pra mim era como fazer memorial descritivo, um artigo acadêmico, defender a tese de doutorado. Aqui encontro espaço para me soltar, rir, me emocionar com as lembranças e as palavras. É um lugar de fala e escuta acolhedora, com pessoas agradáveis que pensam e se expressam de forma gentil, amorosa, onde é possível fazer conexões com as nossas vivências e desejos, às vezes esquecidos, mas que ressurgem e pipocam em forma de texto doce e criativo.
Clarissa Aguiar

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